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Lia Leite resenha A Filha Primitiva (Vencedor do 6° Prêmio Kindle)

por Lia Leite
Foto de Luísa Machado para ilustrar a resenha do livro "A filha primitiva", de Vanessa Passos, por Lia Leite.

Lia Leite, Doutoranda em Literatura pela Universidade de São Paulo. Coordenadora de Projetos Sociais na Fundação Democrito Rocha. Bolsista da Cátedra do Memorial da América Latina/UNESCO. Integrante do GELAF (Grupo de Estudos de Literatura de Autoria Feminina da USP).


Uns não pegam o peito, algo que ao nascer sinaliza os primeiros desvios da vontade de potência de vida. “A filha primitiva” (2021), de Vanessa Passos, tem uma criança voraz, que pega o peito com força e alimenta a narrativa de inquietações. [Dizem que quanto mais a bebê mama, mais se produz leite] e essa produção transforma o corpo numa espécie de máquina. Uma máquina de produção desejante, discernia Deleuze. 

Em A filha primitiva, o desejo vital é a paixão de uma professora pela escrita [o que eu queria mesmo era escrever], e o nervo central da história são os obstáculos impostos pela contingência maternal. A paixão pela escrita é maior que a que tem pelo professor de literatura, um sujeito muito mais velho, que ocupa uma função ambígua de parceiro. Enquanto vive os conflitos da maternidade e da escrita, vivencia também a ausência do pai. A caçada do seu paradeiro é uma batalha pela história de sua filiação, cheia de lacunas [Talvez esse desejo de escrever e criar histórias tenha surgido porque eu nunca tive a chance de conhecer a minha verdade]. Uma narrativa que nunca foi contada, e nesse nada que constitui a figura disformes do pai, é que a personagem procura palavras para dar forma à origem: a busca por histórias é sempre uma busca pela vida.

No trajeto árido da personagem inominada, são relatadas violências de naturezas diversas, que juntas compõem o quadro das opressões vividas pela protagonista. Violência social [Se o patrão chegar, esconde o livro e me chama. Ele é sério e não gosta de gente preta. Ele também não deve gostar de criança, ainda mais pobre.]; obstétrica [As enfermeiras não têm pena da gente]; sexual [tua fé inútil não vai te salvar, não me salvou, não salvou minhas mãos de ter que masturbar aquele velho imundo].

Na cultura do estupro o corpo social está mutilado, então a automutilação e o sucídio aparecem como tendências, tentativas, refúgios da filha primitiva [uma ferida que eu repetia e não deixava cicatrizar por completo. alimentava a raiva que eu guardava e me acalmava]. E mesmo o sexo consentido, esse incessante princípio criativo, é orientado ao vazio [sentindo prazer pra morrer, esquecer que estava viva.] Aqui, a pequena morte está distante de Bataille, e é mesmo uma fuga que margeia da memória dos abusos sexuais ao sexo factual e banal, supérfluo.

A filha primitiva é demasiado humana, e no horizonte da sua verdade encontra também um caminho de liberação. 

Há relatos brutais, logo a linguagem acompanha essa estética. Nos atos de fala está o universo contido no silêncio da relação com a avó, e a herança de violência legado de mãe para filha. E não o faz com ternura e mansidão, ou abnegação cristã, mas com força e raiva. Os silenciamentos das experiências de violência – social, sexual, obstétrica – são rompidos por palavras enérgicas, irascíveis e diretas. Faz-se ouvir e entender a sua revolta. 

A linguagem cotidiana denota o comum do estupro ao longo do romance. É necessário que se diga mais, e sempre mais, o estupro é uma linguagem desalentadoramente comum. O silenciamento é uma característica premente dessa natureza de violência [Disse que se gritasse ia ser pior. Não sei como sobrevivi.], então a luta para que a história seja contada, para que a sua voz não seja silenciada é também um traço de resistência ao horror.

A filha primitiva atravessa caminhos de combate no cotidiano feminino. A relação com a criança é desesperançada. Cheia de questionamentos sobre a maternidade, a solidão, a sexualidade e o seu lugar no mundo. A demanda centralizada e integral de cuidados que o modelo ocidental de maternagem impõe é pesada. Ainda assim, consegue tempo para estratagemas que arrancam da mãe a verdade sobre o seu passado, e redescobre a sua história pessoal. 

São confessados sentimentos inconfessáveis sobre o peso da maternidade e o estigma da mãe santificada. A filha primitiva é demasiado humana, e no horizonte da sua verdade encontra também um caminho de liberação. Aos poucos, o conflito dá espaço e ascendência à produção [Agora me dei conta: a chegada da menina me engravidou de novas palavras], ao devir desse corpo que aprende a gestar-se. Com apoio irrestrito da avó, encontra um eixo de força para a escrita [É a minha vez de lhe contar uma história]. Pelo reencontro baseado no diálogo e na alimentação, no vasto espaço significante da amamentação e da cozinha, refazem-se as fibras dos laços afetivos. O bom alimento que oferece à filha é aquele que recebe da mãe, em “soldadinhos” de feijão, um signo dos afetos que nutrem, fortalecem, curam.

A filha primitiva vive os discursos opositores que são a violência e a força criativa, fontes de sofrimento e nutrição que jorram do mesmo seio. A produção desejante conduz-na à conquista de si, essa máquina de criação que nunca para de conectar a boca ao peito. Portanto, vai além de oposições como o par dialético natureza-sociedade, e não se restringe a pontuar os revezes do essencialismo feminino. Mas convida-nos a perceber as cicatrizes decorrentes do nascimento de si. A sentir os embates de conhecer a sua origem e conduzir a linhagem. A entrar em contato com a vida profunda da própria história.


Foto de Luísa Machado.

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