Lia Leite, Doutoranda em Literatura pela Universidade de São Paulo. Coordenadora de Projetos Sociais na Fundação Democrito Rocha. Bolsista da Cátedra do Memorial da América Latina/UNESCO. Integrante do GELAF (Grupo de Estudos de Literatura de Autoria Feminina da USP).
Uns não pegam o peito, algo que ao nascer sinaliza os primeiros desvios da vontade de potência de vida. “A filha primitiva” (2021), de Vanessa Passos, tem uma criança voraz, que pega o peito com força e alimenta a narrativa de inquietações. [Dizem que quanto mais a bebê mama, mais se produz leite] e essa produção transforma o corpo numa espécie de máquina. Uma máquina de produção desejante, discernia Deleuze.
Em A filha primitiva, o desejo vital é a paixão de uma professora pela escrita [o que eu queria mesmo era escrever], e o nervo central da história são os obstáculos impostos pela contingência maternal. A paixão pela escrita é maior que a que tem pelo professor de literatura, um sujeito muito mais velho, que ocupa uma função ambígua de parceiro. Enquanto vive os conflitos da maternidade e da escrita, vivencia também a ausência do pai. A caçada do seu paradeiro é uma batalha pela história de sua filiação, cheia de lacunas [Talvez esse desejo de escrever e criar histórias tenha surgido porque eu nunca tive a chance de conhecer a minha verdade]. Uma narrativa que nunca foi contada, e nesse nada que constitui a figura disformes do pai, é que a personagem procura palavras para dar forma à origem: a busca por histórias é sempre uma busca pela vida.
No trajeto árido da personagem inominada, são relatadas violências de naturezas diversas, que juntas compõem o quadro das opressões vividas pela protagonista. Violência social [Se o patrão chegar, esconde o livro e me chama. Ele é sério e não gosta de gente preta. Ele também não deve gostar de criança, ainda mais pobre.]; obstétrica [As enfermeiras não têm pena da gente]; sexual [tua fé inútil não vai te salvar, não me salvou, não salvou minhas mãos de ter que masturbar aquele velho imundo].
Na cultura do estupro o corpo social está mutilado, então a automutilação e o sucídio aparecem como tendências, tentativas, refúgios da filha primitiva [uma ferida que eu repetia e não deixava cicatrizar por completo. alimentava a raiva que eu guardava e me acalmava]. E mesmo o sexo consentido, esse incessante princípio criativo, é orientado ao vazio [sentindo prazer pra morrer, esquecer que estava viva.] Aqui, a pequena morte está distante de Bataille, e é mesmo uma fuga que margeia da memória dos abusos sexuais ao sexo factual e banal, supérfluo.
A filha primitiva é demasiado humana, e no horizonte da sua verdade encontra também um caminho de liberação.
Há relatos brutais, logo a linguagem acompanha essa estética. Nos atos de fala está o universo contido no silêncio da relação com a avó, e a herança de violência legado de mãe para filha. E não o faz com ternura e mansidão, ou abnegação cristã, mas com força e raiva. Os silenciamentos das experiências de violência – social, sexual, obstétrica – são rompidos por palavras enérgicas, irascíveis e diretas. Faz-se ouvir e entender a sua revolta.
A linguagem cotidiana denota o comum do estupro ao longo do romance. É necessário que se diga mais, e sempre mais, o estupro é uma linguagem desalentadoramente comum. O silenciamento é uma característica premente dessa natureza de violência [Disse que se gritasse ia ser pior. Não sei como sobrevivi.], então a luta para que a história seja contada, para que a sua voz não seja silenciada é também um traço de resistência ao horror.
A filha primitiva atravessa caminhos de combate no cotidiano feminino. A relação com a criança é desesperançada. Cheia de questionamentos sobre a maternidade, a solidão, a sexualidade e o seu lugar no mundo. A demanda centralizada e integral de cuidados que o modelo ocidental de maternagem impõe é pesada. Ainda assim, consegue tempo para estratagemas que arrancam da mãe a verdade sobre o seu passado, e redescobre a sua história pessoal.
São confessados sentimentos inconfessáveis sobre o peso da maternidade e o estigma da mãe santificada. A filha primitiva é demasiado humana, e no horizonte da sua verdade encontra também um caminho de liberação. Aos poucos, o conflito dá espaço e ascendência à produção [Agora me dei conta: a chegada da menina me engravidou de novas palavras], ao devir desse corpo que aprende a gestar-se. Com apoio irrestrito da avó, encontra um eixo de força para a escrita [É a minha vez de lhe contar uma história]. Pelo reencontro baseado no diálogo e na alimentação, no vasto espaço significante da amamentação e da cozinha, refazem-se as fibras dos laços afetivos. O bom alimento que oferece à filha é aquele que recebe da mãe, em “soldadinhos” de feijão, um signo dos afetos que nutrem, fortalecem, curam.
A filha primitiva vive os discursos opositores que são a violência e a força criativa, fontes de sofrimento e nutrição que jorram do mesmo seio. A produção desejante conduz-na à conquista de si, essa máquina de criação que nunca para de conectar a boca ao peito. Portanto, vai além de oposições como o par dialético natureza-sociedade, e não se restringe a pontuar os revezes do essencialismo feminino. Mas convida-nos a perceber as cicatrizes decorrentes do nascimento de si. A sentir os embates de conhecer a sua origem e conduzir a linhagem. A entrar em contato com a vida profunda da própria história.
Foto de Luísa Machado.
Comment (2)
Texto excelente!
Parabéns à autora e à resenhista.